A possibilidade do Kiss ter copiado a maquiagem dos Secos e Molhados é uma antiga polêmica que esporadicamente retorna, seja em reportagens especiais sobre os Secos e Molhados, entrevistas com o Ney Matogrosso ou em conversas entre os fãs da banda brasileira… O Kiss é famoso por ter elevado suas apresentações a níveis espetaculares: Efeitos pirotécnicos, sonoros e, principalmente, visuais são traços marcantes na carreira da banda… A maquiagem dos integrantes, presente desde o início, é a sua marca registrada. A imagem visual do grupo chamou deveras atenção, projetando e alçando o quarteto ao estrelato. A identidade da banda é forte. Mas vieram deles?
Por Marcella Matos
Perguntado sobre o assunto, Ney Matogrosso, vocalista dos Secos e Molhados, respondeu:
” […] o Kiss é que copiou a gente! A banda já era um estrondo no Brasil e fomos ao México. O sucesso lá foi tanto que ficamos mais uma semana. A Billboard tinha publicado uma foto nossa de página inteira e dois empresários americanos quiserem me levar para os EUA. Recusei a oferta: ”Estou começando uma história no meu país e quero dar seqüência a isso”.
Ele prossegue com o desconfiômetro acerca do plágio:
“[…] Inclusive disseram que minha imagem era boa, mas que o som tinha que ser mais pesado. Eu não ia mudar nosso som por causa disso. Viemos embora. Uns seis meses depois começou o Kiss, com uma maquiagem como a nossa e um som mais pesado”.
Os anos 70 foi um período propício para o aparecimento de múltiplas formas de expressão, dentre elas, o uso da maquiagem, uma vez que fugia dos padrões (aceitáveis) de comportamento: Valores conservadores eram colocados em questionamento com o uso de determinados ‘apetrechos’, bem comum por parte de grupos setentistas, pois fora uma época cuja mobilização e contestação social aliada à efervescência cultural contribuíram para que grupos fizessem uso de tais ‘ferramentas visuais’ em busca de novos espaços e canais de expressão que rompessem com a velha ordem vigente. O que nos leva a deduzir que os Secos e Molhados não ‘inaugurou’ algo que outros grupos da época não tenham experimentado. Os artistas eram conduzidos e estimulados a isso: Quebrar paradigmas.
Apresentações inusitadas, uso de figurinos excêntricos e experimentações sonoras conferiam às bandas um espaço que muitas almejavam. Notoriedade, publicidade, popularidade e reputação eram o desejo de muitas, e, para tal, deviam se destacar dentre as demais; o que não era nada fácil… Originalidade era o ‘elixir’ para o sucesso.
Saindo da contextualização e voltando nossa atenção para a querela em questão… Alguns fatos comprovam que a tal alegação de Ney Matogrosso não está tão correta assim, pois:
- Apesar dos Secos e Molhados terem, de fato, surgido antes do Kiss, por volta do ano de 1971, seu primeiro registro de estúdio foi lançado em meados de 1973, e se tornou um clássico da música popular brasileira. Amálgama criativa que mesclava as mais diversas manifestações artísticas, como: a poesia, música tradicional portuguesa, rock progressivo, pop, folk… Sem dúvida seu recorde de público e vendas refletia a inerência performática do grupo. Entretanto a viagem que Ney Matogrosso se refere aconteceu no dia 23 de maio de 1974, data em que o debut do Kiss já se encontrava à venda:
- Há registros que mostram a banda norte-americana fazendo uso da maquiagem ainda em dezembro de 1972, portanto um ano antes dos Secos e Molhados serem abordados pelos empresários estrangeiros, porém, o sucesso estrondoso da banda brasileira só viria depois do lançamento de seu primeiro registro (agosto de 1973).
Veja outra foto do Kiss durante um show, em agosto de 1973: Pela data foi antes da viagem dos Secos e Molhados ao México.
- O Kiss utilizou a maquiagem (apenas os rostos pintados de branco) pela primeira vez em novembro de 1972 (como Wicked Lester ainda), portanto antes dos brasileiros fazerem sucesso no Brasil.
- Os motivos/ inspiração que levaram os Secos e Molhados a se pintarem nunca foram mencionados; meio que as circunstâncias do momento induziram os músicos a isto: Durante a sessão de fotos para o primeiro disco do grupo, o fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues sugeriu a maquiagem, inspirado em um antigo ensaio de sua autoria. Desde a sessão de fotos (março de 1973) o grupo passou a experimentar algumas variações da maquiagem; só que agora nos palcos.
Agora veja esse show do Kiss em dezembro de 1973, ou seja, também antes da viagem do Secos e Molhados ao México. E já estavam devidamente maquiados!
- Há registros que mostram o Kiss já envergando a maquiagem desde a sua primeira turnê: Club Tour se estendeu entre as datas de 30 de janeiro a 31 de dezembro de 1973. A turnê passava por clubes e bares de Nova Iorque; numa dessas apresentações foram descobertos pelo empresário Bil Aucoin e assinaram o contrato para o lançamento do primeiro disco. O cachê dos shows correspondia a 35 dólares por noite:
Como vimos, o Kiss já fazia o uso da maquiagem antes mesmo da própria banda existir (o ‘make-up’ era bem menos elaborado, claro); quando ainda se apresentavam como Wicked Lester;
Ainda há o fato dos Secos e Molhados terem pisado em solo mexicano no período de março de 1974; já o primeiro LP do Kiss saiu em fevereiro do mesmo ano, portanto, antes da tal reportagem da Billboard.
No show de março de 1973, em Nova York, a maquiagem do Kiss já estava bem mais elaborada:
” Quis colocar no palco uma banda nunca antes vista”. Gene Simons
Quando o Kiss estava em turnê pelo Brasil (1994), perguntaram a Paul Stanley sobre a polêmica com os Secos e Molhados: “Nunca ouvimos falar nessa tal banda. Não temos ideia do que seja ou do que tocam”, disse.
Jogando mais lenha na fogueira: Há um vídeo dos Secos e Molhados em que Ney Matogrosso mostra a língua! Como todos sabem este é um dos maiores símbolos de Gene Simmons. Confira:
No final das contas se chega a conclusão de que o Kiss não copiou os Secos e Molhados. Como dito antes, o quarteto americano já vinha se apresentando com a maquiagem meses antes do primeiro lançamento da banda brasileira; e a caracterização dos roqueiros já estava significamente elaborada desde agosto de 1973.
Nas palavras do jornalista Emílio Pacheco: “[…] Não se trata de defender americanos. Nem de chamar Ney Matogrosso de mentiroso. A história que ele conta é verdadeira. Mas os empresários que o procuraram não tinham nada a ver com o Kiss. [..] Não vejo muito como a imagem de um grupo brasileiro ainda pouco conhecido em seu próprio país poderia chegar tão rapidamente aos Estados Unidos, principalmente numa época em que não existia Internet ou TV por assinatura (nem a cabo, nem por antena parabólica, pelo menos não no Brasil). Mas há quem defenda essa hipótese [do plágio]”.
Na minha humilde opinião tudo não passa de uma grande coincidência, as duas bandas são ótimas, e ambas fizeram história, cada qual com seu estilo e na sua proporção. Fora que maquiagem não era novidade alguma para a época; o próprio David Bowie já fazia uso deste artifício, como nota-se na capa de seu disco de 1973.
E o que dizer de Arthur Brown com Fire, clipe de 1968 (portanto, antes dos Secos e Molhados e do Kiss)? Repare na maquiagem.
Há ainda a banda italiana de rock progressivo ou/e rock psicodélico Ossanna. Esse clipe é do ano de 1971. Observe a maquiagem!
E o que dizer da banda brasileira de (humor) Punk Rock!? O Joelho de Porco também fazia bom uso da maquiagem; Isso em 1972!
Outros artistas que também fazem do uso da maquiagem manifestações e formas de expressão únicas: